O diretor Terry Gilliam explica como superou a morte de Heath Ledger e concluiu 'O imaginário do Dr. Parnassus
Há alguns anos, Terry Gilliam recebeu de um amigo o curioso apelido de Capitão Caos. A motivação partiu do processo de criação do diretor, que procura levar em conta as opiniões de toda a equipe de suas produções. Por um lado, a colaboração é útil para angariar novas ideias. Por outro, opiniões em excesso e sem controle podem significar atrasos, estouros de orçamentos e até o cancelamento de alguns projetos.
O caos, afinal. Considerando o jeito fordista com que a indústria do cinema funciona hoje, é fácil compreender, então, por que Gilliam, apesar de ser celebrado como um dos mais inventivos cineastas em atividade, dirigiu apenas 12 longas-metragens em 40 anos de carreira. Mas fica a pergunta: de que outra forma seria possível dar conta de um filme que se alterna a todo tempo entre realidade e imaginação, traz um visual onírico e esteve ameaçado pela tragédia? A solução para os problemas de "O imaginário do Dr. Parnassus" só poderia ser mesmo o caos. Ou, melhor, o Capitão Caos.
Depois de uma produção que começou em 2007, "O imaginário..." só pôde ser lançado no circuito comercial americano no último Natal e tem previsão de estreia no Brasil apenas para maio. Nele, Parnassus (Christopher Plummer) é o líder de uma trupe de teatro mambembe que passeia pelas ruas de Londres. O sucesso do grupo depende de um espelho mágico, que transforma em realidade a imaginação daqueles que o atravessam. Depende, ainda, do pacto que Parnassus fez com o diabo (Tom Waits) anos atrás e que envolve a alma de sua filha, Valentina (Lily Cole). Mundos imaginários revelados por um espelho estão longe de ser novidade no cinema. Mas, na visão caótica de Gilliam, esses universos se destacam pelo visual caprichado e pela crítica social, dois elementos comuns a seus filmes.
- Nós estamos cercados por muitos espelhos. Televisão, jornais e filmes são todos espelhos do que nós pensamos ser. Ou do que gostaríamos de ser, o que é ainda mais perturbador. Os espelhos deveriam refletir a realidade, mas vivemos numa era de espelhos mentirosos - diz o diretor, em entrevista por telefone ao GLOBO. - O Doutor Parnassus comete muitos erros, mas ao menos sua intenção é boa. Ele tenta encorajar as pessoas a desenvolverem suas imaginações. Escolher ou não o bem no uso da imaginação acaba sendo uma decisão de cada pessoa que se confronta com o espelho.
Okay, Parnassus não é completamente mau, mas o que dizer do caráter de Tony (Heath Ledger), um misterioso homem que é encontrado enforcado sob uma ponte, mas sobrevive e acaba se juntando à trupe? Seu passado vai sendo revelado aos poucos, mas, antes, Tony conquista qualquer um com sua fala mansa e dedicação. Uma das inspirações para elaborar o personagem, diz Gilliam, foi o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair.
- Nos últimos anos, acho que passei a achar que não há mais limite para a ganância. Quanto mais se tem, mais se quer. Há quem consiga, até, ser gentil publicamente, mas privadamente quer sempre mais. A maioria das pessoas com quem eu lido na indústria do cinema é assim - diz. - Os políticos também são bons exemplos. Veja o Tony Blair. Ele parecia capaz de se sair bem depois de tomar qualquer decisão. Recentemente, li uma entrevista em que ele diz que não teria mandado tropas para o Iraque se soubesse que não havia armas de destruição em massa. É a declaração perfeita. O homem continua insistindo que tem princípios. Mas não tem.
Por causa de Tony - o personagem, não o político -, "O imaginário." talvez tenha sido o primeiro filme de Gilliam em duas décadas que não foi badalado simplesmente por ser um filme de Gilliam. O que mais se comenta é a presença de Heath Ledger em seu último papel no cinema. Quando o ator morreu, em 22 de janeiro de 2008, vítima do uso excessivo de medicamentos, ele estava justamente descansando, em casa, durante um intervalo das filmagens de "O imaginário...".
Gilliam soube da fatalidade pela internet, avisado por sua filha Amy Gilliam, uma das produtoras do filme. Eles esperavam rodar novas cenas com Ledger em poucos dias, mas o choque foi ainda maior porque o diretor e o ator haviam estreitado laços de amizade desde que trabalharam juntos em "Os Irmãos Grimm" (2005). Gilliam, então, resolveu não levar "O imaginário..." adiante.
- Eu simplesmente não acreditei, nós havíamos estado juntos dois dias antes. Fiquei paralisado, era uma notícia inesperada e inexplicável. Eu até achei que poderia ser uma piada de mau gosto de alguém do departamento de marketing da Warner, querendo promover o Coringa (personagem de Ledger em "Batman: O Cavaleiro das Trevas"). Mas realmente aconteceu. Ele está morto - diz. - Minha vontade, naquele momento, era de desistir. Mas o bom de estar cercado por pessoas como minha filha e o fotógrafo Nicola Pecorini é que eles não ouvem o que tenho a dizer. Eu anunciei que não iríamos continuar, mas eles se recusaram a aceitar e insistiram para que eu achasse uma solução que evitasse que o último trabalho do Heath se perdesse e fosse esquecido.
Pelo papel em "Batman", que estreou poucos meses depois de sua morte, Ledger recebeu um Oscar póstumo de melhor ator coadjuvante. Já pelo contratempo enfrentado por Gilliam, o ator acabou tendo a companhia de Johnny Depp, Jude Law e Colin Farrel, os três atores que se revezaram com ele no papel de Tony em "O imaginário...". Além disso, nos créditos finais, em vez de o tradicional "Um filme de Terry Gilliam" surge o texto "Um filme de Heath Ledger e amigos".
- A partir do momento em que minha mente voltou do espaço, foi até simples reescrever. Eu parti do princípio de que, se Tony entrasse no espelho com outra pessoa cuja imaginação fosse mais forte, ele poderia parecer diferente. Poderia parecer o Johnny Depp e não o Heath Ledger. Acho que funcionou - diz Gilliam. - Muita gente acha que alguns diálogos, como quando o Johnny faz um discurso sobre James Dean e a Princesa Diana, foram reescritos por causa do Heath. Mas estava tudo previsto. A cena em que ele aparece enforcado, por exemplo, foi a primeira que filmamos.
quinta-feira, 7 de janeiro de 2010
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